"O pátio em questão ficava nas traseiras de um pequeno prédio de rés-do-chão e águas furtadas, quatro a cinco metros abaixo do nível da rua, cercado por um muro que impedia, a quem nele estivesse, de ver para além do espaço que vedava. Para poder ver para além do muro, era necessário subir pelo menos até meio da escada que dava para a rua.
Essa minha primeira descida para o pátio, sempre a considerei a minha primeira descida ao inferno, ou a minha primeira entrada no mundo dos mortos-vivos, como se Orfeu e Aristeu, numa só pessoa, sem o saber, ali tivessem encontrado Eurídice, aquela por quem, a partir de então, me bateria, aquela que, ao contrário da outra da lenda, me resgataria do subterrâneo da vida, do limbo social, para a luz do Sol e da Liberdade.
A minha Eurídice, ali e então revelada, ainda se chama consciência de classe. Ali aprendi a conhecer profundamente as razões da minha assumida e inevitável paixão pela Liberdade. A paixão de lutar pela vida entre os vivos, à luz do sol, em favor dos da minha condição.
Ali, a quatro ou cinco metros abaixo do nível das ruas e das casas onde viviam aqueles que eram considerados “pessoas”; sem água corrente, nem luz, nem esgotos; ali, onde era necessário ter bons rins para enfiar o cu em semicúpio na retrete suspensa e entalada lá no alto, ao nível da rua; ali, onde se escondiam sete famílias em 120 a 140 metros quadrados, entre as quais ainda existiam abissais diferenças de cultura e de condições económicas; ali, daquele pátio que nos colava à pele o estigma da não existência social, afugentando do nosso convívio quem ali não pertencesse (como se leprosos fôssemos); ali, repito, no dia-a-dia da vergonha que sentíamos nos outros pela nossa presença, fui forjando os mecanismos das minhas futuras opções.
Razão tinha Braudel ao afirmar que “é nas ‘caves’ do tecido social, na humidade dos espaços térreos, que nascem as raízes das grandes transformações sociais.”
A aldeia e as brincadeiras de infância, o respeito que sentimos por nós próprios quando os outros nos respeitam, o genuíno e puro das relações desinteressadas, o esvoaçar das estrelas e papagaios de papel ao vento das marinhas, as primeiras ingénuas descobertas sentimentais, a segurança no mundo conhecido, tudo isso desapareceu ao descer ao Pátio do 26 da Rua Luís Monteiro.
Impacto mais desolador, porque o meu sonho sobre a longínqua capital, sobre a terra de onde vinha o pão de trigo, era um sonho impreciso, mas repleto de belas imagens.
Lá na aldeia eu era: o Come e Cala, o Batata, o menino Camilo, o menino dos Salça; de repente, senti-me ninguém… senti-me remetido à condição dos que não contam!
Os anos que passei naquele espaço térreo construíram em mim certezas inabaláveis, convicções mais fortes e duradouras que as que me foram dadas através das leituras feitas ao longo da vida.
O dia-a-dia da família – eu, meus pais e minhas duas irmãs, vivendo em dois compartimentos de alguns nove metros quadrados cada – exercia sobre nós pressões contraditórias mas intensas. A exagerada densidade demográfica do nosso espaço habitável impelia por um lado a uma exagerada intimidade física provocadora de atritos comportamentais e, por outro, exigia uma grande coesão sem a qual a vida se tornava impossível."
MORTÁGUA, Camilo (2009) Andanças para a Liberdade